quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sexo entre pares: o homem romântico e a era das relações igualitárias


Revista e atualizada por   Paulo Brabo (extraído do site www.baciadasalmas.com)

Estocado em Homens e Mulheres

Embora queiramos por vezes encontrá-lo ou enxertá-lo em épocas a que não pertence, o homem romântico é invenção relativamente recente e demorou séculos para ser aprimorado, tendo se fixado na forma como o conhecemos hoje a coisa de duzentos anos. Talvez seu primeiro inventor tenha sido de fato o apóstolo Paulo, quando sonhou há dois mil anos um homem que, embora permanecesse sendo cabeça da esposa (isto é, sem ter sua masculinidade ou sua primazia ameaçadas), teria sua relação com sua mulher caracterizada por amá-la ao ponto de entregar-se por ela. Nesse “entregar-se”, como foi se desdobrando culturalmente através dos milênios, está encapsulado todo o ideal romântico.
A manifestação mais antiga na cultura cristã da corrente que desembocaria no homem romântico parece ter sido a veneração de Maria, devoção que já era uma realidade potentíssima no quarto século da cristandade. Com o avançar dos séculos essa devoção idealizada ao feminino na pessoa da mãe de Deus foi transfigurada e glorificada na figura dos cavaleiros (sempre cristãos), os legítimos proto-românticos e campeões da ideologia do amor cortês – com sua ênfase na bravura, na gentileza e na proteção da mulher.
Isso não quer dizer que os ideais do amor cortês fossem universalmente colocados em prática, ou que o mundo estivesse se tornando imediatamente mais seguro ou mais justo para as mulheres1. No período medieval e no início da era Moderna a mulher era idealizada por um lado, como ícone de pureza em Maria, e demonizada por outro, como emblema de perfídia nas feiticeiras. A mulher genérica e pura (a Virgem Maria) era venerada; a mulher do dia a dia, específica e impura, era com frequência vilipendiada, segregada e usada como bode expiatório.
Porém a figura do homem romântico atravessou as chamas indignas da Inquisição e sobreviveu ao apagar da cultura dos cavaleiros. Com o avançar da era moderna a demonização da mulher foi cedendo espaço à noção de que não há objetivo mais nobre para um homem do que amar e dedicar-se à sua mulher – mesmo que fosse ainda uma mulher idealizada, símbolo admirável de pureza mas sempre carecendo de proteção e de condução. A imagem da mulher, que parecia destinada a residir em extremos, deixou de ser a de um demônio e passou a ser a de uma flor.
Ao longo do século XIX o homem romântico e sua consorte, a mulher apaixonada, conquistaram lastro cultural suficiente para produzir uma imensa guinada na visão ocidental do casamento. Foi mais ou menos nessa época que a massa da sociedade decidiu que havia algo de intrinsecamente inaceitável nos casamentos arranjados. Os poetas criticavam a ideia fazia séculos, mas foram necessários esses séculos de transição para a sociedade aprender a sentenciar que o casamento “por amor” devia ser considerado norma cabível e ideal para todos, em todas as camadas sociais. O romantismo ganhara o coração popular. Como tudo na relação do casal deveria ser guiado pelo amor, e sendo que a voz da mulher era agora ouvida com cada vez maior seriedade (nesse período as mulheres lutaram e ganharam o direito a voto, e continuaram a lutar por direitos iguais em outras frentes), o casamento socialmente sancionado passou a ser aquele realizado por consentimento mútuo.
E em meados do século XX, precisamente no momento em que seu ideal havia conquistado uma indisputada supremacia no imaginário ocidental (e isso em grande parte graças à pregação de Hollywood), o homem romântico deixou de ser necessário, tendo sido tornado obsoleto pela revolução que veio a seguir. Pois nas décadas de 1960 e 1970 um novo paradigma passou a injetar-se implacavelmente nas veias da cultura e da sociedade, inaugurando a partir do selo “paz e amor” o que viria a se tornar a era das relações igualitárias.
Sexo entre pares
Nesse mundo novo a mulher encontrava (pelo menos em teoria) a plena paridade com o homem, passando a ser vista como agente tão livre quanto ele e detentora dos mesmos direitos. Essa igualdade passou imediatamente a refletir-se e a ser universalmente celebrada em todas as áreas: no modo como as mulheres se vestiam, no modo como ocupavam o espaço de trabalho, no modo como exerciam sua iniciativa e sua sexualidade dentro do casamento e fora dele. A mulher deixava de ser uma flor infantilizada e frágil que exigia condescendência e proteção paternalista, e passava a ser uma pessoa que merecia dos direitos de pessoa. A própria lei passou a ajustar-se de modo a incorporar essas novas concepções.
Os anos que gestaram essa nova mentalidade são às vezes chamados de Revolução Sexual, ou pelo menos costuma-se considerar que as duas coisas nasceram juntas. Essa porém foi uma revolução sexual no sentido de revolução na dinâmica entre os sexos muito antes e muito mais do que uma revolução de sexo livre. Não foi o sexo descompromissado e sem barreiras que ensinou ao homem a noção da igualdade entre os sexos, mas o contrário: a noção da igualdade estrita entre os sexos é que patrocinou o relaxamento mais ou menos universal dos escrúpulos sexuais que vigoravam anteriormente.
Durante séculos as legislações sexuais haviam existido primariamente para delimitar, conter e normatizar o uso do sexo como ritual de dominação. Num mundo de iguais, foram tomadas imediatamente por obsoletas.
Dito de outro modo, as correntes socioculturais que impulsionaram os anos 60 e 70 mudaram para sempre o modo como as pessoas enxergam a dinâmica do sexo e da sexualidade. Pela primeira vez na história o sexo deixou de ser visto como ilustração de uma relação de dominação, e passou a ser tido como testemunho inequívoco (e por vezes socialmente esperado) de uma postura de paridade e interesse mútuo. Ainda estamos aprendendo a ponderar o peso dessa reviravolta.
Aqueles anos inauguraram a postura geral que herdamos hoje: a de que o sexo mais casual é legítimo, desde que não seja ato constrangedor (isto é, não represente uma relação de dominação) para qualquer um dos participantes. Na verdade, o sexo forçado é praticamente a única expressão sexual que consideramos unanimemente ilegítima, e isso porque a presente cultura não admite (como permitia-se e até se incentivava antes) que o sexo tenha qualquer conotação de relação de poder. Da mesma forma e com a mesma intenção com que se decidira que igreja e estado devem viver em esferas independentes, promulgamos como necessária e irrevogável a separação entre poder e sexo.
No tempo do homem romântico era considerado inconcebível o casamento sem amor, mas as disparidades internas de poder na relação eram toleradas e às vezes desejadas. No nosso tempo é concebível sexo sem amor, mas em hipótese alguma o sexo sem respeito, o sexo sem correspondência – mesmo que seja a mais tênue e temporária das correspondências. O efeito mais duradouro e mais prenhe de consequências da revolução sexual foi esse: o de despir para sempre a relação sexual de seu estigma de ilustração de desigualdade. Para nós, quer sejamos libertinos ou conservadores, o sexo é agora (ou deve ser) invariavelmente o testemunho oposto: o de paridade e de interesse mútuo.
Num mundo de mudança acelerada como o nosso pode ser fácil esquecer o quanto é recente essa mudança de paradigma em relação aos sexos e ao sexo; num mundo que tem tão rapidamente se adequado a ela, pode ser fácil esquecer o quanto essa mudança é radical em vista do que prevaleceu por milênios antes dela.
O ser humano comum acompanha essas reviravoltas com parcelas iguais de interesse e de deleite, considerando-as em grande parte justas e naturais, e procurando a seu modo a ajustar-se aos ritmos e necessidades gerados pela nova mentalidade. O sistema anterior, que pressupunha um desequilíbrio perpétuo dos pratos da balança, é que lhe parece agora inaceitável e incompreensível2. Porém para aqueles de nós obcecados com questões de sexo e de moral sexual – leia-se: para os cristãos religiosos – a nova mentalidade parece representar a mais satânica das ofensas. Em especial, interpreta-se que a nova ordem constitua uma ameaça formidável às instituições gêmeas que crê-se representar o que há de mais duradouro e sacrossanto na tradição cristã e no projeto divino: o casamento e a família.
A grande controvérsia, no que diz respeito aos católicos, está centrada nas questões do celibato e da contracepção. Para evangélicos e protestantes, que endossam na prática (quando não na teoria) a legitimidade do sexo não-reprodutivo dentro do casamento, a era das relações igualitárias (e a postura vigente a respeito do sexo) representa uma ameaça em outras duas frentes: na aprovação tácita de sexo descompromissado e nos crescentes desafios à heteronormatividade.
Enquanto a nova mentalidade toma por legítima qualquer relação sexual que não ilustre uma relação de poder, a tradição cristã e a leitura tradicional do Novo Testamento não encontram brecha para qualquer relação sexual lícita fora do casamento (como vimos, uma corrente influente da tradição cristã não vê o sexo como legítimo mesmo dentro do casamento.). Partindo dessa disposição, interpretamos o presente relaxamento da sociedade com relação ao sexo como sendo sinal inequívoco da universal apostasia, a gargalhada final da Grande Prostituta.
A primeira grande curiosidade a respeito disso é que a ascensão das relações igualitárias pode ser vista como a vitória histórica e final de princípios de igualdade que são originalmente cristãos – e essa é uma ironia que deve ser devidamente saboreada. Pense o que quiser, a atmosfera cultural que respiramos é a materialização na vida real de um sonho que quando foi proferido representava um contrassenso e um desvario: o mundo, profetizado por Paulo, onde não há nem escravo nem livre, nem grego nem judeu, nem homem nem mulher. Numa palavra, um mundo de relações igualitárias. O mais idealista dos cristãos de dois mil anos de tradição cristã não ousaria sonhar uma realidade terrena em que essa imprevidência se concretizasse ou conquistasse verdadeiro espaço no imaginário coletivo, e é isso o que (aos trancos e barrancos, e acompanhado da devida torrente de contradições pertinentes à condição humana) tem acontecido. No mínimo, é este o mundo com o qual aprendemos a sonhar.
A segunda curiosidade é que a nova mentalidade representa a seu modo uma apropriação secular da noção cristã da supremacia do amor.
Estamos prontos a ficar chocados quando a sociedade tolera o sexo sem compromisso, mas nisso nos recusamos a enxergar o outro lado da moeda – que na nova norma a sociedade deixou de tolerar o que a igreja tolerou por séculos: sexo sem correspondência e sem mutualidade. Os mais promíscuos dentre nós intuem hoje, de modo natural, o que o Novo Testamento propunha subversivamente há dois mil anos: que só a igualdade, a plena horizontalidade, é plataforma sobre a qual se constrói legitimamente o amor. Esses caras galinhas que você condena podem não estar prontos para amar, mas saberão testemunhar que, se for para nascer, o verdadeiro amor nascerá a partir da mutualidade: “você é aceitável para mim e não me coloco acima de você”.
A seu modo, a nova mentalidade representa uma nova e improvável profissão social de fé, a de que igualdade e mutualidade devem preceder o amor. Não foi o sexo antes do casamento que a sociedade decidiu ser uma necessidade; foi a mutualidade como base de qualquer relação.
O Novo Testamento, que tem tão pouco a legislar sobre sexo e tanto a sonhar sobre fraternidade, promulga por todos os poros a importância da mutualidade. É na verdade muito provável que tenha sido a partir da herança de Jesus e dos desafios da graça que nossa cultura tenha esboçado seu projeto de imparcialidade universal.
A própria encarnação, isto é, a descida divina ao nível do ser humano de modo a poder olhá-lo nos olhos, não é mera demonstração de amor; é um hino à graça e portanto à paridade. Nem mesmo Deus ousou dizer que amava este mundo antes de estar aqui ralando conosco – e explicando ainda que todos aqui devem tratar-se com a mais escandalosa e estrita paridade. A encarnação é desse modo a manifestação mais formidável de um conceito evangélico que é reforçado de uma ponta a outra do Novo Testamento, o de que o amor legítimo é todo-inclusivo e portanto todo-horizontal: ao próximo como a si mesmo.
Não é justo, portanto, dizer simplesmente que a nova moralidade se satisfaz com a solução rasa do sexo sem amor; mais justo seria dizer que a nova mentalidade recusa-se a considerar possível ou desejável o amor que não parta de um princípio de paridade e de interesse mútuo. O sexo, que deixou de ser visto como ritual de dominação e passou a ser encarado como celebração de paridade, encontrou essa brecha para dobrar-se à supremacia do amor.
Aqui reside o contrassenso do ressentimento evangélico contra a noção do sexo “consensual”, a ideia socialmente aceita de que deve ser considerada em princípio legítima toda relação sexual, mesmo a mais distraída, que [1] for decidida e executada de comum acordo pelos participantes, [2] demonstrando desse modo não ser ilustração de uma relação de dominação.
Para os evangélicos o sexo consensual é testemunho do quanto a sociedade está perto de sancionar a mais completa promiscuidade; para a sociedade, ele é testemunho do quanto estamos levando a sério nossos esforços de separar sexo de poder.
O próprio casamento, se persiste no ocidente (e isso quer dentro quer fora da subcultura cristã), é inteiramente transfigurado: suas relações internas são na verdade o oposto do que era tido como norma anteriormente. O casamento é agora visto como uma relação entre agentes independentes, equivalentes e com direitos estritamente iguais. Tanto é assim que qualquer desequilíbrio nessa dinâmica interna pode ser tomado como motivo para invalidá-lo social ou juridicamente.
O paradoxo está em que a igreja, defensora autorizada da família, do casamento e do amor, tolerou por quase dois milênios o casamento (e portanto o sexo) não-consensual. Hoje em dia, devidamente instruído pela sociedade sobre o mérito evidente da consensualidade, não há cristão que discorde que o compromisso do casamento deve ser decidido livremente pelos cônjuges e somente por eles. Porém sexo consensual quer dizer sexo igualitário, e isso os cristãos absolutamente não conseguem consentir. A igreja mostra-se disposta a ser corrigida pela cultura apenas naquilo que não ameace as suas posições oficiais (e portanto o alcance de seu próprio poder sobre a sociedade), e nisso demonstra ser ainda mais culturalmente condicionada do que a sociedade que condena.
Hoje a grande parte dos evangélicos saberá reconhecer que Paulo mantinha-se culturalmente condicionado quando aprovava tacitamente a escravatura (“vocês, escravos, obedeçam em tudo aos seus mestres”) e quando sancionava a noção vigente do status inferior da mulher (“que as mulheres se calem nas assembleias e se mantenham em submissão, como afirma a própria Lei”, e “não permito à mulher ensinar e governar o homem”), mas uma parcela muito menor admitirá que ele estava culturalmente condicionado quando condenava a homossexualidade.
Porém, do mesmo modo que não tinha como vislumbrar uma sociedade sem escravos e uma sociedade que decidisse pela estrita igualdade da mulher, Paulo não tinha como antever a noção contemporânea de relação homossexual igualitária.
Como vimos, Paulo não conseguia conceber sexo que não fosse um exercício de defraudação, o emblema claro de uma relação de dominação, e portanto inerentemente vergonhoso para uma das partes. Ele achava que isso era particularmente verdadeiro no que diz respeito às relações homossexuais, e tinha muitos motivos culturais para pensar assim. A relação carnal entre homens adultos e meninos na antiga Grécia, por exemplo, tinha seu caráter legitimado justamente pela desigualdade de idade e de papéis entre os seus participantes. Quando o menino atingia a puberdade e o sexo passava a ser “entre iguais”, a relação era encerrada (ou perdia a aprovação social) porque cria-se que ela perdia o caráter didático (isto é, de dominação e submissão) e portanto a legitimidade.
Devidamente doutrinada pelas ideias subversivas do amor e da mutualidade, propostas pelo Novo Testamento e não inteiramente abafadas pela igreja, a sociedade defende hoje em dia a postura oposta. A relação homossexual contemporânea é tida como legítima precisamente porque é igualitária, isto é, porque não ilustra ou perpetua uma relação de dominação e poder3. Como está fundada na mutualidade, passamos a crer que não é inconcebível que acabe sendo atingida pelo amor.
A questão, portanto, não está em determinar se durante dois milênios de tradição cristã a conduta homossexual foi considerada lícita ou não; a questão está em reconhecer que foram os ideais cristãos do amor e da mutualidade que criaram um mundo em que só o amor entre iguais pudesse ser considerado legítimo.
NOTAS
  1. A geração apostólica não esfriara ainda no túmulo e a tradição cristã já esquecera a postura de Jesus com relação à mulher. Agostinho (354- 430 d.C.) opinava seriamente que o homem é feito a imagem de Deus, mas não a mulher, e Tertuliano (160-220 d.C.) implorava às mulheres que reconhecessem ser o “portão do inferno”, “responsáveis pela entrada do pecado no mundo e pela morte do Salvador”.
    Foram séculos difíceis para ser mulher, e a mera passagem do tempo não parecia melhorar as coisas: mil anos depois de Tertuliano, Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.) estava ainda endossando a opinião de Aristóteles de que a mulher é essencialmente “um homem malfeito”, não possuindo como o homem uma alma racional e tendo sido feita apenas para “assistir com a procriação”.
    As coisas só pioraram para condição feminina com os acenderes da Inquisição. []
  2. O que explica em parte o fascínio contemporâneo por aqueles últimos momentos da história em que a separação de mérito e de esfera entre os sexos era vista como coisa natural; é com esse assombro diante do que nos parece quase extraterrestre que se acompanha o seriado norte-americano Mad Men, que se passa em meados da década de 1960. []
  3. É por isso que, ao contrário do que pressagiam alguns críticos, a legitimação da homossexualidade não implica que a sociedade se mostrará pronta a aprovar qualquer relação sexual que era condenada anteriormente, especialmente a pedofilia – porque, ao contrário da relação igualitária entre adultos, a pedofilia pressupõe uma relação intrinsecamente desigual, e disso aprendemos a tentar proteger todos e qualquer um. []